O Brasil mantém, pelo 17º ano consecutivo, um posto vergonhoso: é o país que mais mata pessoas trans no mundo. Em 2024, foram registrados 122 assassinatos, segundo o Dossiê: Registro Nacional de Mortes de Pessoas Trans no Brasil em 2024: da Expectativa de Morte a um Olhar para a Presença Viva de Estudantes Trans na Educação Básica Brasileira, elaborado pela Rede Trans. Os dados foram divulgados no Dia da Visibilidade Trans, em 29 de janeiro, escancarando uma realidade que insiste em se repetir.
O estado de São Paulo lidera o ranking nacional com 17 casos, reforçando a necessidade de ações concretas e eficazes de proteção e inclusão. Ainda que tenha havido uma redução de 16% em relação a 2023 — quando foram contabilizadas 145 mortes — a sensação de insegurança e abandono persiste, especialmente entre as pessoas trans e travestis.
Diante desse contexto brutal, Santos se destaca como um território de resistência e acolhimento, apostando na estruturação de políticas públicas voltadas à comunidade LGBTQIA+. A cidade conta com o Conselho Municipal de Políticas LGBT, um órgão colegiado vinculado à prefeitura e formado por representantes do governo e da sociedade civil.
Esse conselho atua em diversas frentes: da promoção de ações educativas à defesa ativa dos direitos humanos. Segundo Taiane Miyake, coordenadora de Políticas para a Diversidade de Santos, o papel do conselho é claro:
“Compete ao Conselho participar na elaboração de critérios e garantir o respeito à diversidade sexual e de gênero, para que todas as pessoas tenham seus direitos assegurados, independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero”.
Mais do que um órgão consultivo, o conselho em Santos se posiciona como um ponto de apoio direto para a comunidade, especialmente para as pessoas trans. É lá que chegam denúncias, pedidos de ajuda e relatos de violência e desrespeito.
Entre os principais problemas relatados está o uso de banheiros públicos. Apesar da existência de uma resolução que garante o direito de transexuais e travestis utilizarem o banheiro de acordo com sua identidade de gênero, muitos estabelecimentos ainda violam esse direito básico.
“São várias as demandas que chegam para gente no Conselho […] quase sempre é o desrespeito ao uso de banheiro. Já acompanhei vários processos judiciais deste tipo com causa ganha”, explica Taiane.
Esse tipo de acolhimento e apoio jurídico tem sido essencial para garantir que a população trans não fique desamparada diante das constantes violações.
Mesmo com os números já assustadores do dossiê, a realidade pode ser ainda mais grave. Muitas vítimas de violência não registram boletins de ocorrência — seja pelo trauma, seja pela falta de preparo das delegacias para lidar com a comunidade trans.
Taiane alerta:
“Fazer o boletim de ocorrência é um desafio para as pessoas transexuais e travestis. Ainda temos profissionais nas delegacias despreparados para este atendimento e as vítimas já chegam nestes espaços em sofrimento”.
O perfil traçado pelo dossiê escancara a interseção entre transfobia, racismo e desigualdade social. Das vítimas registradas:
93,3% eram mulheres trans ou travestis
6,7% eram homens trans
62,5% eram pretas ou pardas
14,6% eram brancas
Esses dados não são meras estatísticas. Eles representam histórias interrompidas, vidas apagadas por um sistema que ainda marginaliza o que deveria acolher.
O conselho de Santos mostra que é possível transformar o cenário, mesmo diante de uma realidade tão dura. Com diálogo, presença ativa e políticas bem estruturadas, o município oferece um exemplo de como o poder público pode e deve agir ao lado da comunidade LGBTQIA+.
Enquanto o país ainda reluta em garantir o básico, Santos dá o recado: vidas trans importam — e aqui elas têm voz, têm vez e têm luta.