Nordestino, gay e periférico, Jal Moreno é mais do que o idealizador da Feira Cultural Promovendo a Diversidade: é uma voz firme que transforma resistência em política pública, e arte em ferramenta de afirmação. Desde que assumiu a gestão da Casa de Cultura Hip Hop Leste, em Cidade Tiradentes, enfrenta o preconceito com coragem, abrindo espaço para corpos LGBTQIA+ em territórios historicamente negligenciados.
Sob sua liderança, a feira cresceu, rompeu barreiras e hoje reúne mais de 220 atrações em uma programação diversa e interseccional, que vai da arte ao ativismo. A iniciativa é também um grito coletivo por visibilidade, inclusão e políticas culturais descentralizadas.
Nesta entrevista exclusiva ao Cultura Queer, Jal fala com franqueza sobre as violências que enfrentou, o poder transformador da cultura nas periferias e os bastidores de um projeto que nasceu como semente — e hoje floresce como um movimento de orgulho periférico, político e potente.
Como surgiu a ideia da Feira Cultural Promovendo a Diversidade?
A ideia de fazer a Feira Cultural LGBTQIA+ surgiu como uma possibilidade de autoafirmação no território da Cidade Tiradentes. Desde a minha chegada à gestão da Casa de Cultura, enfrentei muito preconceito e discriminação por ser um homem gay, negro e nordestino — e por não fazer parte da cultura hip hop, predominante na região.
Entre os muitos desafios, recebi ameaças de morte e pressão para desistir do cargo de coordenador. Mesmo assim, me coloquei à disposição, dei “a cara pra bater” e segui aberto ao diálogo. Pedi uma oportunidade para mostrar meu trabalho e contei com o apoio das coletividades para construir uma política pública afirmativa — sem excluir o hip hop, que é pulsante nesse território e em toda São Paulo.
A Feira Cultural LGBTQIA+ é um embrião das paradas periféricas que já acontecem em São Paulo e que, na minha visão, deveriam ser replicadas em todo o país.
A programação conta com mais de 180 atrações. Como foi esse processo de curadoria e escolha das atividades?
Temos a alegria de dizer que superamos os 180 artistas — em 2024, nosso line-up conta com mais de 220. Abrimos chamadas pelas redes sociais para que artistas interessados pudessem se inscrever, e a curadoria foi feita com o apoio de Elvis Stronger, militante há mais de 20 anos da causa LGBTQIA+ e técnico em eventos.
O evento tem como eixo central a interseccionalidade. Como vocês traduzem isso na prática da feira?
A interseccionalidade é uma estratégia fundamental no projeto. Ela nos ajuda a reposicionar reflexões sobre vulnerabilidades e a compreender as diversas formas de opressão enfrentadas pelas pessoas LGBTQIA+.
Através da sua natureza artística, a feira traduz isso reunindo artistas com diferentes identidades de gênero, raças, orientações sexuais e faixas etárias. O etarismo, por exemplo, ainda é um abismo dentro da nossa comunidade, especialmente entre os LGBTQIA+ com mais de 60 anos — e queremos lançar luz sobre isso também.
Quais os principais desafios que vocês enfrentaram para colocar esse evento de pé?
Os maiores desafios foram vencer as barreiras impostas pelo conservadorismo, que cresce a cada ano em nosso país. Nos posicionar nos nossos territórios com a presença massiva de corpos LGBTQIA+ periféricos é uma forma de reafirmar nossa existência — sobretudo nos lugares onde as políticas públicas não chegam como deveriam.
A feira será realizada na Casa de Cultura Hip Hop Leste, um espaço simbólico da periferia. Qual a importância de ocupar esse território?
Desde que assumi a gestão da Casa de Cultura em 2017, marcada por episódios de discriminação, fui me posicionando como um agente transformador. Naquele mesmo ano, junto com o Elvis, organizamos a primeira Parada LGBTQIA+ de Cidade Tiradentes.
Enfrentamos resistência até mesmo da subprefeitura na época e tivemos que acionar o então prefeito Bruno Covas para conseguir realizar o evento. Foi simbólico superar essas adversidades — e seguir em frente. Em 2025, vamos realizar a nona edição da parada.
Ocupar esse território é resistir. É também chamar a atenção do poder público para a importância de descentralizar as políticas públicas. Vivemos nas bordas — no “fundo do saco de gelo” — e merecemos visibilidade.
Fala um pouco sobre o papel da ONG Identidade Periférica dentro dessa construção.
A Identidade Periférica nasceu com DNA LGBTQIA+. Entre 2020 e 2023, por exemplo, executamos o projeto PrEP 1519 na sede da organização.
Quando falamos de periferia, falamos de identidade — e sabemos que, em muitas partes do mundo, a identidade é marginalizada.
A organização aceitou o desafio de firmar um termo de fomento com o Ministério da Cultura. Importante destacar que o recurso para o projeto veio por meio de emenda parlamentar do deputado federal Felipe Becari, que reconheceu a extensão e diversidade da nossa comunidade e entendeu que podemos — e devemos — celebrar nosso orgulho nos nossos próprios territórios, com nossa identidade periférica.
Em tempos tão difíceis para a população LGBTQIA+, como você enxerga o poder transformador da cultura?
A cultura é a ponte entre a nossa comunidade e as oportunidades de ocupar espaços. É por meio da cultura que nos expressamos de forma leve e sem julgamentos — nos tornamos corpos abertos, prontos para sermos quem quisermos ser.
Um bom exemplo é como a cultura transforma vidas por meio de séries e filmes. No Brasil, temos ícones como Gloria Groove, Pabllo Vittar e tantos outros que mostram o quanto podemos ir longe.
Que palavras você gostaria que ecoassem em quem vai participar da feira e viver as lutas da comunidade LGBTQIA+ nas periferias?
“Nossa identidade é periférica, mas nós somos luta e arte.”
Jal Moreno é muito mais do que um gestor cultural — é uma força transformadora que leva arte, política e orgulho às margens da cidade.
Com coragem, estratégia e afeto, ele construiu uma ponte entre a comunidade LGBTQIA+ e as políticas públicas, levando visibilidade para corpos dissidentes nas periferias de São Paulo. A Feira Cultural Promovendo a Diversidade é fruto desse trabalho coletivo e visionário — e prova viva de que é possível florescer onde antes só havia resistência.
Seu nome hoje ecoa nas bordas e no centro, nas ruas e nos palcos, como símbolo de luta e reinvenção. Jal mostra que ocupar espaços não é apenas um ato de resistência: é também um gesto de amor por um futuro mais justo, plural e colorido.
ONG Identidade Periférica
Instagram: @identidadeperiferica_br
Site oficial: www.identidadeperiferica.org
Jal Moreno
Gestor de Equipamento Público I
Casa de Cultura Municipal Hip Hop Leste
Email: jjssilva@prefeitura.sp.gov.br
Telefone: +55 11 98397-6032
Endereço: Rua Sara Kubitscheck, 165 A – Cidade Tiradentes
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